terça-feira, maio 24, 2005

Loulé

Memória e Usufruto

“Necessidade significa pelo étimo aquilo que não cessa. Neste sentido se vale a tradição: quer dizer, teremos nas carências do presente de encontrar nos projectos de viver uma anuência de conjunto suscitadoras do discernimento da História e das memórias reconstituintes do que somos - Povo.”
in Carlos Garcia de Castro, “Tradição e Modernidade”, in “A Cidade”, nº 6, 1991, p.128


Qualquer intervenção num Centro Histórico, tal como em qualquer núcleo urbano ou edifício isolado, é uma intervenção cultural. Não só é uma intervenção na cultura, como, principalmente, é um acto de criação cultural. Isto funciona para qualquer técnico que intervenha, seja ele arquitecto, paisagista, urbanista, historiador... Todos eles, ao proporem ou participarem numa intervenção, devem assumir essa sua faceta de produtores e criadores de cultura.

Sendo assim, qualquer intervenção é sempre transformação. Nenhuma intervenção é asséptica ou inócua. Mas transformação não pode ser apenas modificação: ela é, terá de ser, sobretudo, melhoramento e acrescentamento de valor.

Um Centro Histórico é sempre um valor histórico, estético, cultural, económico, psicológico, sociológico , afectivo. Este valor é sentido por aqueles que lá viveram, amaram e morreram, por aqueles que lá vivem e amam e por aqueles que, simplesmente lá passaram e passam.

As ideias que ora se apresentam para o Centro Histórico de Loulé, partem desse princípio - que a equipa considera básico - o conjunto tem valor per si, a única justificação da intervenção é conferir-lhe mais valor ainda.



Depois desta declaração de intenções, necessário se torna agora, estabelecer as linhas mestras que irão configurar as propostas de intervenção. Elas são essencialmente duas: Memória e Usufruto.
No que diz respeito à Memória, interessa-nos valorar a componente Monumento deste Centro Histórico. Não queremos dizer monumental, que teria um sentido muito mais estético, ou de valor de raridade, mas sim num sentido de objecto - monumento, de objecto que recorda, que se torna referência de um passado, que tem valor histórico pela qualidade da sua memória. Assim consideramos Monumento, o edifício publico, a casa apalaçada, mas também a casa humilde, o fontanário, a arvore, o jardim, a muralha, a Igreja, a malha urbana, a própria rua, a praça, o logradouro. O Monumento é a memória genética do passado, uma espécie de ADN que nos impele a propor o novo, para que o passado seja produtor do presente.
Quanto ao Usufruto, interessa-nos no sentido em não terá validade, uma intervenção que preservando e aumentando valores, não permita que esses valores passem a fazer parte integrante da vida cultural, social, económica dos homens. Tanto daqueles que lá vivem e trabalham, como daqueles que visitam o lugar. O Centro Histórico não deverá, e não poderá perder as características vivenciais, que aliás o construíram. Centro da vida dos Homens, local de nascimento e morte, de trabalho e de festa, de fixação e de passagem.
Entre estas duas linhas estará a qualidade. a qualidade da arquitectura, do urbanismo, da paisagem, ligará a memória ao presente e permitirá que o usufruto do lugar e dos objectos seja um sinónimo de qualidade de vida. Sendo passado, a estrutura do presente, ao conferir-mos qualidade a este presente, estamos a dar condições a que o próprio futuro seja, ele próprio, um futuro de qualidade.
“A Villa era antigamente cercada de muralhas, com seis portas e um forte castello: de umas e de outras ha ainda as ruínas. A população crescendo, rompeu a cêrca das muralhas, cujos restos se vêem hoje no interior da Villa. (…) As ruas de Loulé são bonitas e bem calçadas.”
in Pinho LEAL, Portugal Antigo e Moderno, Lisboa, 1874, pp.447-448



Qualquer centro histórico, como o de Loulé, correspondendo, basicamente, a um casco muralhado, implica constantemente um diálogo entre o interior e o exterior. As portas e os postigos serviam para fechar o espaço, quando necessário, mas permitiam, também, abrir esse espaço, servir o fluxo de pessoas, de notícias, de coisas e de emoções.

Interior/exterior – Intramuros/extramuros – são duas realidades ambivalentes, que não existem per si, mas por ambas.

Assim sendo, qualquer intervenção numa situação similar, terá que ter em conta esta dicotomia, esta realidade plural de chegada e de partida, de estar ou não estar.

Contudo, também outra dicotomia se coloca – a do passado/presente, ou, se quisermos, a do devir do tempo – as duas faces de Janus!

É nestas duas realidades que se terá de basear uma intervenção na malha urbana proposta (Rua D. Paio Peres Correia, Largo D. Pedro I, Largo das Bicas Velhas e Largo D. Afonso III), uma malha que se coloca entre o exterior e o interior da vila intramuros e que ao ser intervencionada, naturalmente, se tornará objecto de um diálogo entre o passado e o presente.

Um olhar pela toponímia arcaica poderá ajudar a perceber algumas das soluções preconizadas. A Rua D. Paio Peres Correia, antiga Rua de Nossa Senhora da Conceição, inicia-se na antiga Porta que deveria ter tido o mesmo nome, tendo em conta a sacralização das entradas. Como resultado desse fenómeno nasceu, primeiro um oratório, depois uma capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição. É esse primeiro sentido que deve ser salientado, o sentido de porta sacralizada da vila intramuros. Era também a porta de acesso mais directo ao Castelejo e Alcaidaria, verdadeiro coração militar de Loulé, e por isso, uma zona mais ou menos fechada aos habitantes. Desse encerramento resta hoje apenas um vestígio ténue, que se propõe manter a um nível simbólico e não real. A sua função presente (essencialmente de memória – Museu e Arquivo Histórico), deve ser aberta e não fechada.

Se o Centro militar era o Castelejo, o Centro religioso era a Igreja Matriz. Até lá se chegava ou através da Rua Martim Farto, ou pela antiga Rua da Fonte ou pela antiga Rua da Cadeia. Qualquer que fosse a solução, ter-se-ia que passar pelo Largo D. Pedro I, que já teve a designação de Largo da Estalagem. A memória desse antigo topónimo já não existe, mas se alguma estalagem ou albergaria aí houve (recorde-se que em 1471, uma albergaria de Loulé foi transformada em Hospital), a sua localização foi lógica e feliz, em termos de malha urbana. É um Largo que de certa forma permite uma escolha de fluxos, funcionando como uma cortina para o interior da vila. Essa memória, de escolha e cortina deverá ser mantida.

O Largo das Bicas Velhas teria uma função, característica numa vila amuralhada. As fontes seriam imprescindíveis em aglomerados urbanos desta natureza. Contudo este Largo (ou pelo menos a sua função) é relativamente recente. Aliás, a sua posição, tão perto da cerca, indica uma construção já numa época em que a função da muralha estaria em decadência. Com efeito, a fonte, construída em 1837, vem substituir outra, fronteira ao Convento do Espírito Santo, desaparecida em 1836. Porém é provável, mesmo de esperar, que neste local tenha existido um pequeno Postigo, que daria acesso rápido à Horta d’el Rei. Hoje, desactivada da sua função primeira, a Fonte das Bicas Velhas, tornou-se numa memória urbana de alguma qualidade que poderá ser fruída num momento de estar.

Ao transpormos este Largo, para fora das muralhas, entramos na Rua da Horta d’el Rei, num espaço de anterior valor agrícola, característico, também em urbes deste jaez, e que nos permite, agora, comunicar com o antigo Largo do Chafariz, actual Largo D. Afonso III. Este é um largo fundamental para perceber parte da vida económica e quotidiana da Loulé antiga. Ligeiramente descaído para um dos lados da antiga barbacã, talvez junto a um provável acesso desta estrutura defensiva, teria tido uma função fortemente económica, para além de uma função, logicamente, viária. Seria o espaço de recepção de produtos e homens e animais que os transportavam. O topónimo indicia um equipamento essencial para os animais – o chafariz – e alguns topónimos próximos, bem como informações dos Róis de Confessados oitocentistas, indicam uma forte concentração de profissões ligadas ao tráfego de mercadorias, pessoas e animais – Almocreves, Albardeiros e Ferradores, por exemplo. Hoje em dia, este Largo, para além de funcionar como rótula de distribuição de fluxos, é um espaço privilegiado, sobretudo para quem vem do litoral, como panorama da memória. É como que, novamente, uma barbacã – não defensiva, mas de acolhimento e informação – informação de como foi a urbe e como é agora, informação de, como estando no exterior, se pode penetrar no interior – através de valências de memória e reflexão.

Tendo em conta tudo o que anteriormente foi referido, apresentamos, agora, aqueles que consideramos os quesitos mais importantes da intervenção:

· Fluir
· Estar
· Visitar/Conhecer
· Chegar/Partir
· Entrar/Sair

Estes cinco quesitos serão organizados através de permanente diálogo, entre as dicotomias já mencionadas – Exterior/Interior – Passado/Presente. Esse diálogo, porém, será sempre atravessado por duas assunções: que qualquer intervenção é sempre um acto de cultura hodierna, que qualquer intervenção só será válida a partir de um acrescentamento de valor.

1 Comments:

Blogger Gaspar LDVS said...

Tem uns sites deveras interessantes; sentir-m-ia honrrado se visitasse o meu:
http://www.maquiavelicopolitica.blogspot.com/

12:40 da manhã  

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