sábado, maio 28, 2005

A “Sopa dos Pobres da Vila da Amadora”



Na noite de sábado, 19 de Maio de 1917, o caos tinha-se apossado de Lisboa. Estava-se em plena I Guerra Mundial e as coisas não corriam bem para o exército português, em especial na Flandres. Desde pelo menos Agosto de 1914 que havia problemas alimentares no país, sobretudo no que diz respeito ao pão. Ao longo de três anos vários foram os momentos críticos, com levantamentos populares, assaltos a padarias e comboios, mortos e feridos. A situação não era portanto nova.
É difícil de saber o que aconteceu em Lisboa nesta noite de sábado e quantos foram os mortos, talvez cerca de 40 populares, nos confrontos entre o exército e os assaltantes de lojas da baixa. A Guarda prendeu 547 pessoas. Portugal batera no fundo, em especial o governo de Afonso Costa que ainda se iria arrastar durante alguns meses até que, a 5 de Dezembro, Sidónio Pais acampou na Rotunda para derrubar o governo. A “Revolução da fome” tinha preparado o caminho para a “Revolução do Sidónio”.
Independentemente das questões políticas, Sidónio, o presidente–rei nas palavras de Fernando Pessoa, vai tentar uma espécie de regeneração da nação através de um intervencionismo estatal, à boa maneira maçónica. A 10 de Maio de 1918 lançam-se as bases de uma intervenção imediata, com a criação, no âmbito do Ministério das Subsistências e dos Transportes, da Sopa dos Pobres, que rapidamente ficou conhecida por “Sopa do Sidónio” (em 1926 eram já 35).
Ultrapassando a questão, muito discutida, de se esta aventura sidonista foi um movimento protofascista, o que é facto é que Salazar vai continuar a servir-se do modelo da sopa dos pobres, integrando-o na Direcção Geral de Assistência, criada em 1931. Ao mesmo tempo, dezenas de instituições particulares (sobretudo ligadas à Igreja) vão sendo criadas com o mesmo fim, o de fornecer assistência, sobretudo refeições aos mais necessitados.
Também a Amadora não fugiu a este movimento. Em 1938 é criada a Associação de Beneficência “Sopa dos Pobres da Vila da Amadora”, tendo os seus estatutos sido aprovados pelo Governo Civil de Lisboa, a 7 de Março do referido ano. Com sede provisória no nº 10 da Rua 5 de Outubro, tinha esta Associação como objectivos “promover a beneficência entre os pobres da (…) Vila (…), quer fornecendo-lhes diàriamente (sic) uma sopa, quer protegendo-os, sempre que possível, com a prática de outros actos de caridade”, isto segundo os seus estatutos. Havia na Associação dois tipos de sócios – os efectivos, que contribuíam com uma quota mensal de um ou mais escudos e os sócios protectores, aqueles que tivessem contribuído com verbas significativas, uma ou mais vezes.
Como corpos gerentes, a associação dispunha de uma Assembleia Geral, Direcção e Conselho Fiscal. Fica aqui a sua relação:
Direcção
Raquel Roque Gameiro Ottolini (Presidente), Maria Hermínia Gomes Cabrita, Maria José de Brito Guimarães, Beatriz Valente de Carvalho Couto Vianna, Maria Luiza Corrêa Pereira, Maria Irene Simões Lopes e Raquel da Conceição d’Oliveira Ferreira
Mesa da Assembleia Geral
José Francisco Antunes Cabrita, António Rodrigues Corrêa, Adolfo Campos Couto Vianna e Marciano Victorino Costa
Conselho Fiscal
Francisco d’Almeida Coelho e Campos, Vasco Sampaio Castelo Branco e José
Duarte Ferreira
Curiosa é a distribuição por género dos elementos constituintes destes corpos gerentes, sendo que a direcção era apenas constituída por senhoras, enquanto os restantes eram homens. A caridade parecia adequar-se bem ao mundo feminino, mas os homens não abdicavam da sua supervisão…
in Notícias da Amadora, 1 de Julho de 2004

terça-feira, maio 24, 2005

Loulé

Memória e Usufruto

“Necessidade significa pelo étimo aquilo que não cessa. Neste sentido se vale a tradição: quer dizer, teremos nas carências do presente de encontrar nos projectos de viver uma anuência de conjunto suscitadoras do discernimento da História e das memórias reconstituintes do que somos - Povo.”
in Carlos Garcia de Castro, “Tradição e Modernidade”, in “A Cidade”, nº 6, 1991, p.128


Qualquer intervenção num Centro Histórico, tal como em qualquer núcleo urbano ou edifício isolado, é uma intervenção cultural. Não só é uma intervenção na cultura, como, principalmente, é um acto de criação cultural. Isto funciona para qualquer técnico que intervenha, seja ele arquitecto, paisagista, urbanista, historiador... Todos eles, ao proporem ou participarem numa intervenção, devem assumir essa sua faceta de produtores e criadores de cultura.

Sendo assim, qualquer intervenção é sempre transformação. Nenhuma intervenção é asséptica ou inócua. Mas transformação não pode ser apenas modificação: ela é, terá de ser, sobretudo, melhoramento e acrescentamento de valor.

Um Centro Histórico é sempre um valor histórico, estético, cultural, económico, psicológico, sociológico , afectivo. Este valor é sentido por aqueles que lá viveram, amaram e morreram, por aqueles que lá vivem e amam e por aqueles que, simplesmente lá passaram e passam.

As ideias que ora se apresentam para o Centro Histórico de Loulé, partem desse princípio - que a equipa considera básico - o conjunto tem valor per si, a única justificação da intervenção é conferir-lhe mais valor ainda.



Depois desta declaração de intenções, necessário se torna agora, estabelecer as linhas mestras que irão configurar as propostas de intervenção. Elas são essencialmente duas: Memória e Usufruto.
No que diz respeito à Memória, interessa-nos valorar a componente Monumento deste Centro Histórico. Não queremos dizer monumental, que teria um sentido muito mais estético, ou de valor de raridade, mas sim num sentido de objecto - monumento, de objecto que recorda, que se torna referência de um passado, que tem valor histórico pela qualidade da sua memória. Assim consideramos Monumento, o edifício publico, a casa apalaçada, mas também a casa humilde, o fontanário, a arvore, o jardim, a muralha, a Igreja, a malha urbana, a própria rua, a praça, o logradouro. O Monumento é a memória genética do passado, uma espécie de ADN que nos impele a propor o novo, para que o passado seja produtor do presente.
Quanto ao Usufruto, interessa-nos no sentido em não terá validade, uma intervenção que preservando e aumentando valores, não permita que esses valores passem a fazer parte integrante da vida cultural, social, económica dos homens. Tanto daqueles que lá vivem e trabalham, como daqueles que visitam o lugar. O Centro Histórico não deverá, e não poderá perder as características vivenciais, que aliás o construíram. Centro da vida dos Homens, local de nascimento e morte, de trabalho e de festa, de fixação e de passagem.
Entre estas duas linhas estará a qualidade. a qualidade da arquitectura, do urbanismo, da paisagem, ligará a memória ao presente e permitirá que o usufruto do lugar e dos objectos seja um sinónimo de qualidade de vida. Sendo passado, a estrutura do presente, ao conferir-mos qualidade a este presente, estamos a dar condições a que o próprio futuro seja, ele próprio, um futuro de qualidade.
“A Villa era antigamente cercada de muralhas, com seis portas e um forte castello: de umas e de outras ha ainda as ruínas. A população crescendo, rompeu a cêrca das muralhas, cujos restos se vêem hoje no interior da Villa. (…) As ruas de Loulé são bonitas e bem calçadas.”
in Pinho LEAL, Portugal Antigo e Moderno, Lisboa, 1874, pp.447-448



Qualquer centro histórico, como o de Loulé, correspondendo, basicamente, a um casco muralhado, implica constantemente um diálogo entre o interior e o exterior. As portas e os postigos serviam para fechar o espaço, quando necessário, mas permitiam, também, abrir esse espaço, servir o fluxo de pessoas, de notícias, de coisas e de emoções.

Interior/exterior – Intramuros/extramuros – são duas realidades ambivalentes, que não existem per si, mas por ambas.

Assim sendo, qualquer intervenção numa situação similar, terá que ter em conta esta dicotomia, esta realidade plural de chegada e de partida, de estar ou não estar.

Contudo, também outra dicotomia se coloca – a do passado/presente, ou, se quisermos, a do devir do tempo – as duas faces de Janus!

É nestas duas realidades que se terá de basear uma intervenção na malha urbana proposta (Rua D. Paio Peres Correia, Largo D. Pedro I, Largo das Bicas Velhas e Largo D. Afonso III), uma malha que se coloca entre o exterior e o interior da vila intramuros e que ao ser intervencionada, naturalmente, se tornará objecto de um diálogo entre o passado e o presente.

Um olhar pela toponímia arcaica poderá ajudar a perceber algumas das soluções preconizadas. A Rua D. Paio Peres Correia, antiga Rua de Nossa Senhora da Conceição, inicia-se na antiga Porta que deveria ter tido o mesmo nome, tendo em conta a sacralização das entradas. Como resultado desse fenómeno nasceu, primeiro um oratório, depois uma capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição. É esse primeiro sentido que deve ser salientado, o sentido de porta sacralizada da vila intramuros. Era também a porta de acesso mais directo ao Castelejo e Alcaidaria, verdadeiro coração militar de Loulé, e por isso, uma zona mais ou menos fechada aos habitantes. Desse encerramento resta hoje apenas um vestígio ténue, que se propõe manter a um nível simbólico e não real. A sua função presente (essencialmente de memória – Museu e Arquivo Histórico), deve ser aberta e não fechada.

Se o Centro militar era o Castelejo, o Centro religioso era a Igreja Matriz. Até lá se chegava ou através da Rua Martim Farto, ou pela antiga Rua da Fonte ou pela antiga Rua da Cadeia. Qualquer que fosse a solução, ter-se-ia que passar pelo Largo D. Pedro I, que já teve a designação de Largo da Estalagem. A memória desse antigo topónimo já não existe, mas se alguma estalagem ou albergaria aí houve (recorde-se que em 1471, uma albergaria de Loulé foi transformada em Hospital), a sua localização foi lógica e feliz, em termos de malha urbana. É um Largo que de certa forma permite uma escolha de fluxos, funcionando como uma cortina para o interior da vila. Essa memória, de escolha e cortina deverá ser mantida.

O Largo das Bicas Velhas teria uma função, característica numa vila amuralhada. As fontes seriam imprescindíveis em aglomerados urbanos desta natureza. Contudo este Largo (ou pelo menos a sua função) é relativamente recente. Aliás, a sua posição, tão perto da cerca, indica uma construção já numa época em que a função da muralha estaria em decadência. Com efeito, a fonte, construída em 1837, vem substituir outra, fronteira ao Convento do Espírito Santo, desaparecida em 1836. Porém é provável, mesmo de esperar, que neste local tenha existido um pequeno Postigo, que daria acesso rápido à Horta d’el Rei. Hoje, desactivada da sua função primeira, a Fonte das Bicas Velhas, tornou-se numa memória urbana de alguma qualidade que poderá ser fruída num momento de estar.

Ao transpormos este Largo, para fora das muralhas, entramos na Rua da Horta d’el Rei, num espaço de anterior valor agrícola, característico, também em urbes deste jaez, e que nos permite, agora, comunicar com o antigo Largo do Chafariz, actual Largo D. Afonso III. Este é um largo fundamental para perceber parte da vida económica e quotidiana da Loulé antiga. Ligeiramente descaído para um dos lados da antiga barbacã, talvez junto a um provável acesso desta estrutura defensiva, teria tido uma função fortemente económica, para além de uma função, logicamente, viária. Seria o espaço de recepção de produtos e homens e animais que os transportavam. O topónimo indicia um equipamento essencial para os animais – o chafariz – e alguns topónimos próximos, bem como informações dos Róis de Confessados oitocentistas, indicam uma forte concentração de profissões ligadas ao tráfego de mercadorias, pessoas e animais – Almocreves, Albardeiros e Ferradores, por exemplo. Hoje em dia, este Largo, para além de funcionar como rótula de distribuição de fluxos, é um espaço privilegiado, sobretudo para quem vem do litoral, como panorama da memória. É como que, novamente, uma barbacã – não defensiva, mas de acolhimento e informação – informação de como foi a urbe e como é agora, informação de, como estando no exterior, se pode penetrar no interior – através de valências de memória e reflexão.

Tendo em conta tudo o que anteriormente foi referido, apresentamos, agora, aqueles que consideramos os quesitos mais importantes da intervenção:

· Fluir
· Estar
· Visitar/Conhecer
· Chegar/Partir
· Entrar/Sair

Estes cinco quesitos serão organizados através de permanente diálogo, entre as dicotomias já mencionadas – Exterior/Interior – Passado/Presente. Esse diálogo, porém, será sempre atravessado por duas assunções: que qualquer intervenção é sempre um acto de cultura hodierna, que qualquer intervenção só será válida a partir de um acrescentamento de valor.

Castelo de Vide

Castello de Vide. Villa da prov. do Alemtejo, séde de conc. e de com., distr. e bisp. de Portalegre. Tem tres freguezias: Santa Maria da Deveza, S. João Baptista e S. Thiago Maior. Está situada junto à fronteira de Hespanha, em ponto elevado na encosta d’monte, em frente da Serra de S. Paulo. A pov. é muito antiga, parece ter sido fundada ainda antes do domínio romano, pois já existia quando foi destruída a cidade de Norbia Cesaria. Sobre a etymologia do nome ha diversas opiniões; querem uns que fôsse Villa de Vide, por causa d’uma grande vide que existia no sítio onde se edificou o castello, parecendo corroborar esta opinião o brazão da villa, que se compõe d’um escudo, tendo no meio um castello cercado por uma vide com seus cachos e parras; outros pretendem que se chamasse Villa Divide, por estar próximo da divisão de Portugal e Castella. Depois que se edificou o castello, tomou o nome de Castello de Vide.”

in Esteves PEREIRA & Guilherme RODRIGUES, Portugal, Diccionário Histórico, Biográfico, Heráldico, Chorográfico, Numismático e Artístico, Lisboa, João Romano Torres, 1906, pp.895/896


Mas, porque o espaço é contínuo e porque o tempo é uma das suas dimensões, o espaço é, igualmente, irreversível, isto é, dada a marcha constante do tempo e de tudo o que tal marcha acarreta e significa, um espaço organizado nunca pode vir a ser o que já foi, donde ainda a afirmação de que o espaço está em constante devir.”

in Fernando TÁVORA, Da Organização do Espaço, Porto, FAUP Publicações, 1996, p.19



ESPAÇO, TEMPO, TRANSFORMAÇÃO E RESPONSABILIDADE

O espaço que temos: uma rua, uma praça, um largo. A rua, confrontada com um casario que não lhe reconhece sempre a mesma largura, desemboca na praça e timidamente ultrapassa-a para, então se confundir com o largo, acabando e recomeçando o seu papel de transmissão. A moldura do espaço, também ela espaço, apresenta uma vivência complexa - vivência habitacional e de trabalho, vivência religiosa e vivência política. Mas são vivências desgarradas, não harmónicas. Humildes, umas, altivas, outras, desdenhosas, ainda outras. Dir-se-ia pertencerem, todas elas, a espaço-tempos diferenciados, divorciados, com funções nunca concorrentes.

Procurar no tempo uma justificação? É possível. Castelo de Vide é, na sua essência, uma vila roqueira, que encontra no seu castelo a sua dimensão medieval. Fora dessas muralhas castelejas, primeira linha de defesa, estariam os humildes, ou aqueles cuja religião os a-associava. As cortinas de defesa do burgo, não provocavam, assim, quaisquer necessidades de novas centralidades, fora do castelo.

Os séculos XVII e XVIII, tudo vieram alterar. A vida roqueira já não era o ideal para uma representação de poder social. Casas apalaçadas precisavam de mais espaço, a concorrência com judeus ou cristãos-novos, era cada vez mais complexa (aliás o Marquês de Pombal faz desaparecer este último epíteto). Logicamente, também a religião se deve ter ressentido. O poder político e o religioso, procuram agora uma nova centralidade. De uma pequena capela do século XIV, nasce a nova Matriz, verticalizada, pretendendo ser axial. Mas o poder político não lhe quer ficar atrás. Ocupa o espaço a um dos lados da novel igreja, vira costas à praça que logicamente se tinha constituído pela axialidade religiosa e forma com o pelourinho (já tardio), uma outra axiologia. Arrufos entre antigos cristãos-velhos e antigos cristãos-novos?

Facto é a diferenciação funcional entre a Carreira de Cima e a Carreira de Baixo, facto é a valorização das traseiras da Matriz e frente da Câmara e a desvalorização da frente da Matriz e traseiras da Câmara, fenómeno tanto mais estranho, visto este último edifício , o dos Paços do Concelho, ter sido construído em três frentes. Uma para a Carreira de Cima, outra para a Carreira de Baixo e a terceira, a mais monumental tendo em conta o seu período de construção, o Barroco, a dar para a própria igreja, com uma escadaria interrompida, espaço cénico que se anuncia mas que não o consegue ser.

O que se pretende agora, é a requalificação desse espaço desvalorizado, antiga devesa, depois rossio que pretendia ser praça. A transformação é simples - sem fugir à força intrínseca das arquitecturas, procura-se um espaço que se torne unificador das margens construídas. Por outras palavras, a Praça D. Pedro V, deverá deixar de viver, como o local aonde assumem papéis icónicos, a Igreja Matriz e o edifício dos Paços do Concelho, como forças perturbadoras do espaço, e deverá transformar-se numa “ágora”, onde as linguagens arquitectónicas se constituam como dialogantes. Um espaço que será, ao mesmo tempo, de penetração nas várias arquitecturas, de estar e de lazer e de passagem, melhor dizendo, de distribuição dos vários itinerários da restante rede urbana.

A lógica da actuação é, também, simples. Temos aqui dois dos principais edifícios de Castelo de Vide, bem como algumas das principais marcas de memória da Urbe, que não se esgotam em arquitecturas mais ou menos áureas, a Igreja de S. João Baptista, solares, a Fonte do Ourives, o monumento a D. Pedro V. Esta deveria ser, quase que forçosamente, a principal praça de Castelo de Vide.

A transformação, passa então por atribuir valor urbano ao espaço, através de equipamento adequado e marcação funcional das diversas valências. Essa atribuição requer, da nossa parte, talvez com alguma violência, assumir o carácter do tempo - o nosso tempo, enformado pela passagem dos outros tempos - os tempos passados. Nesse sentido, é nossa responsabilidade, aceitarmos uma marcação topológica da arquitectura, que na cidade não poderá viver desgarrada das realidades, outras, que organizam o espaço. Mas aceitamos também a responsabilidade de criarmos uma utopia, em que orientamos a arquitectura numa senda de integração, mais do que participação numa soma das partes (1).

Esta intervenção urbana, torna-se assim numa aceitação de responsabilidades. Aceitamos a responsabilidade da nossa leitura do tempo, aceitamos a responsabilidade de organizar o espaço conforme essa leitura e conforme o nosso conceito de espaço actual. Mais do que um simples projecto de arquitectura, este é um acto, consciente de cultura.

Mas a responsabilidade deverá ser partilhada. O espaço intervencionado será constituído como vivêncial. O tempo dos homens se encarregará de, continuamente, o re-organizar. Quando isso deixar de acontecer, esse espaço estará morto, bem como a cidade e os homens.

Finalmente, aceitamos outra responsabilidade. Não procurámos, esteticamente e funcionalmente, nenhum modelo pré-concebido de praça pública. Procurámos sim, conciliar topos já existentes, marcas do tempo, com a criação de outras marcas, potencializadoras de vivências e efeitos visuais. Não queiram aqui encontrar fórmulas já experimentadas e eventualmente aplaudidas. Assim sendo a nossa responsabilidade é acrescida e múltipla - a de manter, a de criar, a de integrar, a de organizar, sobretudo a de valorizar - tal explica algumas das nossas escolhas, todas elas assumidas como um tempo novo.


A MEMÓRIA DO LUGAR


Como muitas cidades portuguesas, de origem medieval, Castelo de Vide sentiu no século XVIII um forte crescimento urbano, que implicou um recentramento, com a necessidade de criação de novas marcas.

Neste contexto, a actual Praça D. Pedro V assumiu um papel de protagonista na malha urbana. Por um lado torna-se no centro cívico da urbe, por outro estabelece uma ligação lógica entre a zona mais antiga e a setecentista, finalmente assenta o poder civil e religioso, através da Matriz e dos Paços do Concelho, pese embora estes últimos se virem noutra direcção, para a Rua Bartolomeu Álvares da Santa ou Carreira de Cima, marcando essa disposição com o pelourinho, sem, contudo, conseguir renegar o fazer parte integrante do mesmo espaço.

A traça setecentista da Matriz substitui a da antiga Igreja de Sta. Maria da Devesa, trecentista, possivelmente sacrificada às exigências de marcação da nova função. Este templo e o solar, agora Paços do Concelho, são os objectos mais importantes, como marcas urbanas, do espaço a intervencionar. Contudo, será ainda de referenciar, a Igreja de S. João Baptista e o Largo Eanes, através deles se completando um espaço que se pode considerar unitário, embora numa lógica espácio-temporal ele se devesse estender até à antiga porta da Devesa, na actual Avenida da Aramenha.

Para além do realce destas quatro marcas, juntamente com alguns equipamentos já existentes (Fonte do Ourives, Memória de D. Pedro V), a intervenção dever-se-à pautar pela integração das funções anteriores deste espaço: as de Centro Cívico, que já mencionámos, e as agrícolas da devesa, anterior ao século XVIII, hoje apenas entrevistas pela toponímia.

Num cenário de reabilitação, procura-se manter a memória do local como meio de interpenetração de um espaço antigo com um tempo novo.

domingo, maio 22, 2005

Igreja de S. João Baptista de Tomar

A Igreja de S. João Baptista, matriz de Tomar é um templo do gótico final, com duas épocas de campanhas de obras dentro do século XV. O pórtico pertence já ao ciclo manuelino, embora a fachada denuncie ainda uma fácies marcadamente gótica, fazendo antever um interior em três naves que são cobertas por abóbadas artesoadas com bocetes. A torre é construída em três corpos distintos, sendo de destacar a sua coroação em coruchéu piramidal.

Mulheres e Abril

“Tal como a Igreja serve Cristo, a mulher serve a família!”Justificava-se assim, no Antigo Regime a submissão da mulher. Mulher que não tinha quaisquer direitos, que permanecia na menoridade.Adolf Hitler remetia a mulher para as crianças, para a cozinha e para a Igreja, eram os três K’s – Kinder, Kuche, Kirche.Nas imagens da “Lição de Salazar” lá aparecia sempre a mulher na cozinha, esperando o marido com um sorriso nos lábios e uma ranchada de filhos à sua volta... terá sido por isso que Salazar diminuiu para três anos a escolaridade obrigatória na mulher? Ou seria por isso que determinadas profissões, tradicionalmente de mulheres, enfermeiras e hospedeiras do ar por exemplo, estavam reservadas apenas a solteiras?Afinal o Estado Novo era muito antigo...E hoje, estaremos muito melhor?


Para a minha mulher…

A Praça Dr. Eugénio Dias, no Sobral de Monte Agraço e a atitude urbanística pombalina

Sobre o Pombalino, como arquitectura e urbanismo, já muito se disse e escreveu. Atitudes racionalistas, inseridas no espírito das luzes europeias do século XVIII, indicadores de concentração de poderes por parte de um estado déspota esclarecido que impõe regras, submetendo os interesses particulares ao bem geral ou, na origem, um rocaille “doméstico” (como lhe chegou a chamar Manuel Rio-Carvalho), utilizado como possibilidade de construção rápida e, depois, normalizada e normalizadora.
Se é discutível a ideia do desenho prévio de um projecto político, em que a arquitectura e o urbanismo se integrassem, não o será a existência em Pombal, de uma concepção de poder em que ressaltava a importância da fixação de modelos normativos – tanto na arquitectura e urbanismo, como na economia, na sociedade, na cultura, enfim, se o Pombalino puder ser definido, ele terá sempre que ser entendido como uma tentativa de normalização, no sentido de um estado racionalista e centralizador.
A reconstrução de Lisboa posd terramoto surge, assim, como uma matriz geradora, pese embora não ter constituído uma tendência fortemente globalizadora. Herdeiros dessa atitude, só o Porto dos Almadas, Vila Real de Santo António, Manique do Intendente ou o Porto Covo do capitalista Bandeira. Cada um destes exemplos, porém, é marcado por desvios à norma, tanto circunstanciais, como por posições socio-políticas diferentes e, mesmo, por situações estéticas, se não opostas, pelo menos desiguais (1).
Para além dos quatro casos urbanísticos referidos e de alguns planos geométricos realizados em contexto colonial (2), outras tentativas foram feitas, mas sempre de uma forma mais incompleta – Leiria e Setúbal, por exemplo, ou Coimbra, que apesar do ousado plano, integrado na reforma da Universidade, acabou por ser afectado pela “viradeira”.
Até aqui falei de situações urbanas que remetem para um entendimento de uma obra perfeita, ou seja, para casos “(...) que referem ao processo operativo explícito enquadrado pelo sistema de normas tendencialmente canónicas (...)” (3). São situações que fazem parte de um discurso urbano de organização ou reorganização exaustiva de um tecido edificado. Contudo, outras situações há, que pretextam intenções não sistemáticas, mas apenas significativas ao nível da percepção. São normalmente pequenas intervenções, valendo mais pelo simbolismo do que pela qualidade urbanística, embora não a desdenhem ou a ponham em causa.
É o caso da Praça Dr. Eugénio Dias, no Sobral de Monte Agraço – vulgarmente referenciada como pombalina, tendo em conta as circunstancias e o tempo da sua organização, mais do que a sua configuração. Esta Praça está ligada à figura de Joaquim Inácio da Cruz Sobral, colaborador do Marquês de Pombal, tesoureiro do Erário Régio, uma das instituições paradigmáticas deste tempo e donatário da vila, em 1771 (até 1759, as rendas do concelho revertiam a favor do Colégio do Espírito Santo de Évora, tal como já tinham revertido para a Diocese dessa cidade (4)).
Este ilustre representante da Nobreza de Toga pombalina, foi o responsável pela construção (ou reconstrução) no Sobral de Monte Agraço, dos Passos do Concelho (entretanto reformados nos séculos XIX e XX), do Chafariz monumental, do Solar dos Sobrais e reconstrução (essa de certeza) da Igreja hoje Matriz, de Nossa Senhora da Vida (5). Esses edifícios, juntamente com algum edificado anterior (com alguma arquitectura de feição vernacular de grande qualidade), acabam por organizar um espaço pouco regular, que se afastava bastante de uma imagem erudita. Será então dividido em duas partes, um pequeno largo, funcionando quase como adro da igreja (hoje designado como Praça da Republica) e em outro, maior e mais regular – a Praça Dr. Eugénio Dias.
A situação é aqui diferenciada das reportadas anteriormente, aproximando-se mais, salvaguardando as devidas proporções, ao que aconteceu no Porto e em Coimbra. Parte-se de um edificado preexistente, transformado por novas construções ou reconstruções – a atitude urbanística na Praça harmoniza, não se impõe à arquitectura. Sugerem-se assim duas hipóteses. Será a Praça realmente pombalina em atitude ou apenas no tempo (c. 1771). Mas se há harmonização, não será a harmonia que o racionalismo procura? Nesse sentido aqui teremos um pequeno, mas qualificado exemplo do urbanismo setecentista, objecto qualificador de uma arquitectura entre o erudito e o vernacular e que entende perfeitamente o papel integrador do urbanismo como agente das relações sociais.
Nesse sentido não resisto a deixar aqui as quadras de cariz popular de Carlos Morais:
A Nossa Praça

Nossa Praça é muito bela
E largamente espaçosa:
Beija-a o sol todo o dia,
Eis porque se fez formosa

Ampla sala de visitas
Tem seus pontos de atracção:
Do “Café” ao chafariz,
E do Santos ao Jordão.

Por altura dos festejos
Muito povo lá passeia,
E uma banda nesses dias,
Do coreto nos recreia (6)



Notas

(1) É o caso do Porto, marcado por uma tradição barroca “nasoniana” que dificilmente se casaria com a depuração da arquitectura da reconstrução lisboeta.
(2) Caso de Mazagão (Pará) e Vila Bela (Mato Grosso) no Brasil e Goa, que não terão ultrapassado experiências coloniais anteriores – cf. José-Augusto FRANÇA, A Reconstrução de Lisboa e a Arquitectura Pombalina, Lisboa, 1989, p.76.
(3) In Luís AFONSO, O Projecto Urbano Clássico..., 1999, p.9.
(4) Cf. Maria Micaela SOARES, Sobral de Monte Agraço e o Colégio..., 1999.
(5) Cf. a.a.v.v., Concelho de Sobral de Monte Agraço..., 1987, p.38.
(6) In Carlos MORAIS, Sobral Nossa Terra, Sobral de Monte Agraço, 1984, p.32.


BIBLIOGRAFIA

a.a.v.v.,
Concelho de Sobral de Monte Agraço – Inventário Artístico, Sobral de Monte Agraço, Câmara Municipal, 1987
AFONSO,
Luís, O Projecto Urbano Clássico e a Grande Lisboa Pombalina, in GEHA, nº 2/3, 1999, pp.9-22
FRANÇA,
José-Augusto, A Reconstrução de Lisboa e a Arquitectura Pombalina, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1989
GOUVEIA,
António Camões, Estratégias de Interiorização da Disciplina, in História de Portugal, vol. IV, dir. José Mattoso, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp.415-449
MORAIS,
Carlos, Sobral Nossa Terra, Sobral de Monte Agraço, Câmara Municipal, 1984
QUARESMA,
António Martins, Porto Covo – Um exemplo de Urbanismo das Luzes, sep. Anais da Real Sociedade Arqueológica Lusitana, 1988
RODRIGUES,
Maria João Madeira, Cidade Oceânica e Mundial. Fundamentos da Teoria do Urbanismo Colonial Português, in GEHA, nº2/3, 1999, pp.23-64
ROSSA,
Walter, A Cidade Portuguesa, in História da Arte Portuguesa, vol. III, dir. Paulo Pereira, Lisboa, Círculo de Leitores, 1995, pp.233-323
SOARES,
Maria Micaela, Sobral de Monte Agraço e o Colégio do Espírito Santo e Universidade de Évora, sep. “Boletim Cultural” da Assembleia Distrital de Lisboa, 1999

sexta-feira, maio 20, 2005

O Lugar da Venteira

A Venteira é uma das três povoações que formaram o núcleo inicial da actual cidade da Amadora (as outras duas terão sido a Porcalhota e a Falagueira). O seu topónimo poderá derivar, ao contrário do que é usualmente referido (terra de muito vento), de terra vintaneira - terra afolhada de 20 em 20 anos, por muito difícil de amanhar - o que está, aliás, de acordo com as suas características geo-morfológicas (no topo de uma colina basáltica, algo escarpada, sobretudo a norte e a noroeste.
Mais ou menos, no centro da actual Freguesia, encontra-se a zona do primitivo casal agrícola que dará origem ao Lugar da Venteira, no início do século escolhido como área privilegiada de veraneio ou residência de burgueses e intelectuais.
A mancha urbana organiza-se, visivelmente, em três fases. Primeiro (finais do século XIX) a partir da Rua 1º de Dezembro, que deverá corresponder a um antigo caminho, que da Venteira desceria à Estrada Real de Mafra/Sintra e, portanto, à Porcalhota e Benfica e que seria, também, utilizado para vir à Estação. Uma segunda fase deverá corresponder, grosso modo, à abertura das Ruas 1º de Maio, Diogo Bernardes, Alexandre Herculano, Afonso de Albuquerque e Heliodoro Salgado, resultantes da pressão dos anos 40/50. Entretanto, a abertura, nos anos 30, da Rua Mestre Roque Gameiro, organizava a parte mais antiga. Finalmente, a construção da Igreja (inaugurada em 1958) e o arranjo urbanístico da sua praça, será responsável pela terceira fase, essencialmente já dos anos 60. Tudo o que acontece nos anos 70, 80 e 90, acaba já por se adaptar a esta malha, realizada em três tempos.

Cristo Pantocrator

Após a crise do século III, em Roma, o Cristianismo encetou uma das viragens mais significativas na história da humanidade. De religião perseguida passou a religião oficial do Império, mesmo quando este se cindiu, ficando o cristianismo com dois centros – Roma, no Ocidente e Constantinopla (Bizâncio) no Oriente.

Se no Ocidente o feudalismo irá provocar um fraccionamento do poder que se vai constituir como obstáculo a um domínio total de Roma, o que irá provocar uma constante luta entre os potentados feudais e o Papa, no Império Romano do Oriente o Cristianismo vai tornar-se na mais pura das religiões imperiais, sobretudo a partir de Justiniano. E logicamente, a uma prática religiosa imperial corresponderá uma representação simbólica dessa prática.

Uma das representações simbólicas bizantinas, das mais curiosas e das mais importantes, marcadamente teofânica, é o Cristo Pantocrator, Cristo Majestas Potestas, ou simplesmente Cristo em Majestade ou Cristo Entronizado. Ele é o imperador universal, a ligação entre o céu, reino de Cristo e a terra reino do imperador romano, representante de Cristo. No Oriente ele é quase sempre representado no meio de um círculo, representação do Mundo, rodeado de anjos (como se vê neste caso) ou dos símbolos dos quatro evengelistas (tetramorfo).

Curiosamente o Cristo Pantocrator cedo chegou à Europa, tornando-se um dos símbolos por excelência do românico medieval. Aqui ele instala-se num dos locais mais simbólicos da igreja, o tímpano do pórtico principal, envolto mais do que pelo círculo, agora pela mandorla, a amêndoa mística, por vezes rodeado por uma corte, em que o módulo de Cristo se sobrepõe aos outros, num gigantismo bem marcado. Por vezes essa corte, apanhando todo o tímpano, representa os 24 velhos da visão apocalíptica de S. João, afastando-se da imagética imperial do Oriente.

Assim, no Ocidente o Imperador é agora a figura do pai, do pai severo que não hesita em castigar os seus filhos com as penas infernais, também elas bem visíveis na decoração falante das igrejas românicas. E só no gótico, quando a Igreja Cristã aproxima o homem do céu, a figura do Pantocrator perde para a figura maternal da Virgem Maria. A Igreja queria-se agora mais redentora do que castigadora…

Amadora, 15 de Julho de 2004
Ao Marcelo de Moraes

Estação da CP do Rossio

Riscada por José Luís Monteiro, em 1886-87, a estação do Rossio é um dos edifícios emblemáticos do ecletismo português, enquadrado num romantismo já tardio, aliás bem característico da situação portuguesa.

Monteiro deparou-se com um caderno de encargos que o obrigava ao neomanuelino e conseguiu esgalhar uma fachada bem equilibrada, rasgada por espaços amplos, em especial os arcos que remetem para a simbologia do túnel e que acabam por atirar para uma imagética quase moçárabe. O arquitecto não terá ficado satisfeito com o trabalho decorativo, da responsabilidade do francês Bartissol, tendo várias vezes feito referência à falta de sensibilidade dos canteiros por ele utilizados (quase todos estrangeiros), tendo-os convidado a ir visitar os Jerónimos para ver como se fazia.

É curioso, que este edifício acaba por ser um símbolo do romantismo português, com a sua fachada neomanuelina, como programa oficial da estética que se queria redentora, a redenção de um tempo hodierno por um passado glorioso e glorificado e uma gare, belo exemplo da arquitectura do ferro, apontada para o futuro. À vista o passado, mas o futuro bem protegido. Um dia chamei a este tempo, o tempo de Janus, o deus das duas caras – glorifica-se o passado, pretendendo, através dele, alcançar um futuro glorioso.

De realçar, ainda, no cruzamento da descarga dos dois arcos centrais, a estátua de D. Sebastião. Ele é, na mitologia nacionalista, “o desejado”! Também a estação do Rossio era “a desejada” para a população da linha de Sintra, que antes da conclusão do túnel do Rossio, tinha que ir para a estação de Alcântara e depois vir para a Baixa. Mudam-se os tempos, não se muda o fado – D. Sebastião nos valha! Rais-nos parta!!!
Ao João Januário

Capela das Conchas

Quinta das Índias
Vialonga
Relatório de Observação

Orago – S. Francisco Xavier

Típica capela rural, integrante de uma antiga quinta.
Como base de trabalho, aponta-se para uma construção do século XVI, embora possa ser mais antiga.
O interior de é de uma nave, com capela-mor pouco profunda, embora essa capela possa ter sido refeita, uma vez que no exterior se perceba uma cabeceira bem escalonada. As decorações do interior são arcaizantes mas devem ter sido feitas já no século XIX. Os azulejos praticamente desapareceram todos, mas os restos in situ remetem para o século XVII. A fachada é rematada em frontão triangular e é circundada por cornija pouco acentuada. O pórtico é simples, rectangular, em pedra bem aparelhada de calcáreo branco, encimado por janela quadrangular. Do lado direito uma porta lateral hoje cega, apresenta um aparelho cortado em bizel, provavelmente também do século XVI.
Numa segunda fase é acrescentada à capela uma construção lateral (lado esquerdo), bem como uma galilé. Este acrecescento poderá corresponder à necessidade de aumentar a capacidade da capela, provavelmente pela sua abertura ao culto público (?). A divisão do lado esquerdo poderia passar a funcionar como sacristia. Curiosamente a galilé é construída em dois registos, sendo que no segundo se abre na parede lateral, uma grande janela que deveria servir para entrada de luz na própria capela, à maneira de clerestório.
Numa terceira fase, provavelmente no século XVII, é construída uma passagem (?), adoçada ao lado direito da capela e da galilé, em abobadilha ogival (por informações de locais). Um dos arranques do arco toral da abobadilha é uma pilarete em rusticado. Esta estrutura apresenta algumas dificuldades de interpretação, uma vez que só teria alguma justificação se ligasse a capela a um outro edifício, facto que só poderá ser lido através de sondagens arqueológicas no terreno.


27.06.04

Sortelha

Varanda de Pilatos é o nome porque é vulgarmente conhecido o balcão que encima a porta principal da cidadela de Sortelha, armado sobre uma cachorrada e dispondo de machicoulis ou matacães, sistema de defesa comum na fortalezas medievais.

Sortelha, a 773 metros de altitude, foi uma vila roqueira, construída provavelmente sobre um castro anterior, sede de concelho com foral dado por Sancho II, em 1220, que assim pretendia povoar esta região, sem o que facilmente ela se perderia para Castela. A forma inusitada da sua muralha, em anel, sendo que o castelejo ou cidadela faz as vezes de pedra, estará na origem do seu nome (Sortilia sigifica anel). Pelo foral se percebe que a principal actividade económica dos seus povos, seria a pastorícia.

Em 1510, D. Manuel concede um novo foral, ao qual está ligado o pelourinho que ainda hoje se vê no largo da entrada, frente ao castelejo.

O território do concelho teve algumas oscilações, para além da vila, em 1885 o arrabalde era constituído pelas freguesias de Casteleiro, Moita, santo Estêvão, Malcata, Urgueira, Aldeia de santo António, Águas Belas, Lomba, Pousafoles, Pena Lobo e Bendada. Por essa altura, pertencia Sortelha ao Distrito de Castelo Branco. Hoje, pertence ao concelho do Sabugal, distrito da Guarda e à sua sombra se abrigam os lugares de Dirão-da-Rua, Quarta-Feira, Caldeirinhas, Vinha Redonda, Azenha, Vale de Escaleira e Ribeira da Cale.

Muito mais haveria para dizer, mas o melhor é irem lá (ou lá voltarem, pois Sortelha não se conhece numa tarde), até porque, tal como se canta nas Janeiras –

Inda agora aqui tcheguei
E ó por o pei na escada
Logo o mê coração dixe
Aqui mora gente honrada

O Mosteiro de Leça do Bailio

O Mosteiro de Leça do Bailio foi a primeira sede da Ordem do Hospital em Portugal, cabeça de Priorado ou Bailiado, de onde provém o topónimo. No local terá existido um convento, construído c. de 900, arrasado em princípios do século XII, durante a investida de Almançor. Durante o século XII, os freires de S. João do Hospital terão iniciado a sua reconstrução, mas será completamente reedificado no século XIV, pelo Bailio Estêvão Vasques Pimentel.

Exemplar típico do gótico nacional, a igreja apresenta-se com características de igreja-fortaleza, ornada de merlões nos flancos e com o pórtico soprepujado por um balcão ameado que proteje uma rosácea. A frontaria é flanqueada por uma poderosa torre de secção quadrangular, com seteiras, janelas geminadas e matacães em balcões na fronte e nos ângulos. A igreja é de três naves e cinco tramos, com clerestório e tecto de madeira. A capela-mor é coberta de abóbada polinervada.

Ainda no século XIV, o Bailio Álvaro Gonçalves, pai de Nuno Álvares Pereira, transfere a cabeça do Bailiado para a Flor da Rosa, que manda construir em 1356.

A Catedral de Viseu

Edificada entre a última década do século XI e a primeira da centúria seguinte, a Catedral de Viseu sofreu várias alterações, que lhe reduziram o número de tramos (entre outras coisas), mas não lhe retiraram o carácter de igreja fortificada, pesada e sólida. A última alteração de vulto deve-se ao Bispo D. Diogo Ortiz de Vilhegas que a mandou abobadar (a sua cobertura primitiva era em madeira) e reconstruir a fachada, tendo-a consagrado de novo em 1516. É uma igreja de três naves e três tramos, com arcos divisórios assentes em robustos pilares, envolvidos por doze colunas tangentes, à maneira cisterciense (como por exemplo na sala do Capítulo de Alcobaça).

A arquitectura Bizantina-eslava

Em 989 o Império Bizantino vivia uma situação complicada, com o poder dos dois irmãos imperadores, Basílio e Constantino, a confrontar-se com a sublevação do General Bardas. Por outro lado, o império estava a ser atacado por búlgaros, sérvios e russos.

Desejosos de poder aliviar a pressão, os dois imperadores propõem uma aliança ao chefe russo, Vladimiro de Kiev, que já lhes tinha conquistado a cidade de Querneso, na Crimeia (perto da actual Sebastopol). Ana, irmã dos imperadores é dada em casamento a Vladimiro, que se compromete a converter ao cristianismo ortodoxo bizantino, o que aliás faz, ainda em Querneso.

De regresso a Kiev, Vladimiro e Ana, mandam construir a Igreja de Santa Sofia (terminada em 1037), um templo de 5 naves e 5 ábsides (a igreja deste Mosteiro de S. Miguel terá 7 ábsides) coberto por cúpulas e decorado por mosaicos. Esta igreja torna-se no modelo dos templos ortodoxos, que rapidamente se vão construindo por diversos pontos do império russo (Novgorod a seguir, depois Moscovo).

Curiosamente, em 1473, Ivan III, imperador russo já instalado em Moscovo, casou com Sofia, sobrinha do último imperador bizantino (Constantinopla foi conquistada pelos turcos otomanos em 1453) e passou a considerar-se herdeiro do império bizantino e a usar como bandeira, a águia bicéfala. Um dos seus sucessores, Ivan IV, o Terrível, tomou o título de Czar, ou seja – César!

É assim que a arquitectura (e não só) bizantina se expande para o Norte eslavo, “conquistando” o império russo. Uma arquitectura dominada pelo gosto de um espaço imenso, em que a massa joga com a luz e a cor. Espaço e estabilidade serão talvez os dois valores maiores. Se Santa Sofia de Kiev é a “mãe” dos templos ortodoxos russos, Santa Sofia de Constantinopla é a “mãe” de todos os templos bizantinos ortodoxos. Justiniano Augusto, quando a viu construída, terá dito: “Salomão, venci-te!”.

Bem Gastão, vou tentar responder às questões que me pões, embora concerteza ainda faça levantar mais dúvidas.

Começo com um intróito.
A antiga gramática dos estilos, hoje, já está ultrapassada, ou pelo menos tende a ser desvalorizada. Fala-se hoje mais em atitudes do que em estilos. Sobretudo começamos a admitir mais a ideia de séries, de modelos que se vão repetindo até que a repetição está tão desajustada que inicia uma nova série (a ideia de quem conta um conto, acrescenta um ponto pode aqui aplicar-se). É claro que continuamos a utilizar os termos antigos, até por uma questão de referência. Repara no exemplo que vem da pintura – o impressionismo mais não é do que um naturalismo francês levado às últimas consequências, em contrapartida, este impressionismo levado para outros caminhos envereda pelo fauvismo, pelo expressionismo, inclusivamente pelo cubismo (com Cézanne), etc.
Por outro lado, à medida que nos aproximamos de uma sociedade mais aberta, mais cosmopolita, as estruturas de imitação tornam-se mais subtis, permitem formas de exploração muito mais eclécticas, por vezes pessoais, a própria natureza da economia da arte se modifica e permite essas ultrapassagens.

Passando às tuas dúvidas, que se calhar são as minhas.
Em primeiro lugar o Barroco. Normalmente considera-se um movimento estético entre 1600 e 1750, centralizado em Itália, partindo de um modelo de classicismo, adoptado pelo maneirismo em que a atitude clássica é moldada de uma maneira mais orgânica, por vezes anticlássica, pese embora a aparente contradição. Procura-se a teatralidade, o cenário, a opulência...
Pessoalmente não admito um barroco jesuítico, admito, isso sim, uma arquitectura que compreende as necessidades jesuíticas, ou melhor, da contra-reforma e que perpassa pelo maneirismo e pelo barroco. O Rocaille, por sua vez, já algum tempo que foi desligado da atitude barroca, visto ser, assumidamente, um anti-classicismo.
No que diz respeito aos edifícios que referes, o Palácio de Queluz é um palácio com uma construção muito lenta. Os primeiros edifícios são assumidamente rocaille, ainda que, com laivos de barroco, os últimos serão já neo-clássicos. Mas o neo-classicismo é um caso à parte neste panorama, uma vez que parte de uma adopção do classicismo romano, muitas vezes sem perceber o espaço. Ou seja, com as devidas excepções (e quase todas elas em França (com Leloux, por exemplo), o neoclassicismo é uma arquitectura de fachada, pelo que o interior é obrigado a formatar-se num espaço mais moderno, já próximo de um funcionalismo burguês ou a utilizar situações anteriores (rocailles, por exemplo). Por outro lado, não nos podemos esquecer que Portugal está fora dos circuitos de génese destes movimentos (França e Itália) e por isso a nossa emulação (é a tal questão das séries) é feita a partir de modelos desviantes. S. Carlos pode caber nessa situação.
Quanto ao neo-classicismo, fora o rocaille, todos os movimentos estéticos até ao século XIX são classicismos. Em qualquer momento nós podemos encontrar referências clássicas que nos remetem para essa situação. Realmente o movimento neo-clássico de finais do séc. XVIII, inícios do XIX é curto, mas não nos podemos confundir com referências clássicas anteriores.
Relativamente à última questão, a arquitectura doméstica portuguesa é um caso à parte. Por um lado, muitos desses palácios utilizam referências da arquitectura chã. Por outro são casos de construção continuada o que implica um cuidado arqueológico muito grande, para perceber os vários momentos do edifício. Aí cada caso é um caso e o que podemos fazer é organizar uns passeios e vermos umas coisas.
Até que era uma boa ideia...
Um grande abraço

Almourol, a lenda do Mouro e de Beatriz

Desculpem, mas não resisti a inserir uma foto de Almourol.
Dedico-a à Sílvia, embora sabendo da sua antipatia militante contra a minha desgraçada profissão, contrastante aliás com a sua ridente simpatia.
Por isso não vou aqui contar a história do Castelo. Muito menos vou dizer que terá sido “em tempos que já lá vão” um castro da Idade do Ferro, aproveitado pelos romanos, como o comprovam alguns achados arqueológicos. Também não direi que por lá terão passado alanos, visigodos e muçulmanos. O facto da zona constituir-se como uma importante estrada fluvial, bem como o seu interesse pesqueiro concedeu-lhe uma importância militar. Mas pode a Sílvia ficar descansada que não direi que o Castelo foi tomado por D. Afonso Henriques, tendo ficado na posse dos templários, cujo Mestre Gualdim Pais o terá mandado reconstruir, como o refere a placa que encima a porta do Castelo. Também não mencionarei que depois da extinção da Ordem do Templo, o Castelo passou para o senhorio da de Aviz.
O que eu quero é recontar uma das lendas que estão associadas ao Castelo e que vem publicada na obra, Os Mais Belos Castelos de Portugal: a lenda do Mouro e de Beatriz.

Era alcaide do Castelo D. Ramiro, um homem feroz e violento, destacado nas lutas contra a moirama e que um dia escravizou um jovem mouro, depois de matar a sua mãe e sua irmã, diz-se que de uma forma completamente fútil. O jovem passou a viver no Castelo, como pagem, secretamente jurando vingança. O primeiro acto da sua jura foi envenenar a mulher de D. Ramiro, mas por vezes o destino prega partidas. Tinha o Alcaide uma jovem e bela filha – Beatriz – pela qual o jovem mouro se apaixonou, sendo o sentimento recíproco. Um dia Ramiro resolve conceder Beatriz em casamento a um Alcaide das redondezas. Os dois jovens amantes fogem sem deixar rasto, o amor venceu! D. Ramiro, o feroz guerreiro, senhor de Almourol, morre de desgosto e, ainda hoje, na noite de S. João, no alto da torre de menagem aparecem enlaçados no seu amor, o Mouro e Beatriz. A seus pés, Ramiro pede perdão. Da boca do jovem Mouro surge a resposta – MALDIÇÃO!!!

O Palácio de Queluz

Em 1654 D. João IV institui a Casa do Infantado, destinada aos filhos segundos do Rei. Nela é incluída o domínio rústico de Queluz, constituído por uma propriedade e um pavilhão de caça, que tinha sido confiscado ao Marquês de Castelo Rodrigo, na sequência dos acontecimentos da Restauração.

Desde cerca de 1747 até 1807, decorrem em Queluz obras que vão constituir um conjunto sem grande integração arquitectónica, mas que mostram as tendências e atitudes que marcaram Portugal na 2ª metade do século XVIII. Ali encontramos uma compreensão barroca do espaço, uma compreensão rocaille na decoração dos interiores e, já, uma antevisão do que será algum do neoclassicismo português.

O primeiro arquitecto de Queluz (fora algumas obras anteriores a 1747, entretanto destruídas) foi Mateus Vicente de Oliveira. É dele o risco do núcleo principal do palácio e das fachadas de “cerimónia” e de “Malta”. Mas Mateus Vicente rapidamente se afasta da obra e é substituído pelo francês Jean-Baptiste Robillon. Robillon é, sobretudo um gravador e debuxador, mas será a ele que o Infante D. Pedro vai confiar a continuação dos trabalhos, mormente o último corpo arquitectónico (Pavilhão Robillon), a decoração dos interiores e os jardins.

Queluz é um edifício que se fecha no interior e para os jardins. Acentua-se assim um intimismo, onde a graça, a futilidade do luxo e da vida, abandonam definitivamente a tradição barroca e encetam a rocaille. Naturalmente que Robillon reservou muitas das suas energias para estes interiores, tanto na decoração das paredes como na dos tectos. O trabalho de talha é notável, contando com a colaboração de entalhadores vindos de França, como Jacques-Antoine Collin e portugueses como Silvestre de Faria Lobo. Basta pensar nas salas do trono, dos embaixadores ou de música.

Este palácio não revela um programa sólido, tanto ao nível da arquitectura como das artes decorativas, é antes um programa circunstancial, feito de vontades e atitudes de momento. Nem tal coisa podia ser diferente, começa por ser uma casa de campo para príncipes, passa a ser casa de campo de reis e chega a ser considerado palácio real... Contudo é também essa a linha da História de Portugal nesta época, também ela circunstancial e feita de vontades de momento, em especial a partir de D. Maria I. Uma vez mais, a arquitectura serve para entender a vida...

O Pátio da Inquisição em Coimbra

Fundado em 1547 por D. João III, O colégio das Artes de Coimbra deveria ser um exemplo pedagógico do Humanismo português. Contudo, rapidamente passa para as mãos da Companhia de Jesus e, finalmente, o seu edifício acabou por se tornar a sede da Inquisição de Coimbra, que entretanto já tinha processado alguns dos mestre humanistas do antigo Colégio.

Relaçam, e Lista
Verdadeyra das pessoas que saíram no Auto da fè que se celebrou na praça da Cidade de Coimbra em Domingo 4 de Mayo de 1625 annos.

A pessoa que se segue nam abjurou

Manuel Cardoso Espinosa christão novo de idade de 60 annos natural de Lamego morador em Vianna Arcebispado de Braga preso segunda vez por encobrir pessoas em sua primeira confissão: teve por penitência que fosse ao auto da Fè ouvir sua sentença com hua vella acesa na mão & que tivesse carcere a arbitrio dos Senhores Inquisidores.

Pessoas que abjuram de leve suspeyta na Fè

Belchior Fernandes Christão velho de 62 annos de Villaverde Bispado de Miranda por dizer que não estava deos na Hostia consagrada: foy com mordaça & degradado dous annos annos para Castro Marinho no Reyno do Algarve.

Diogo Pinheiro Cardoso christão novo de 47 annos de Trancoso Escrivão em Almendra Bispado de Lamego casado com Cicilia Cardosa Christã nova por fazer hua irreverencia a hum Crucifixo & e lhe dizer palavras muy indecentes

António Lopes Christão novo de 34 annos, solteiro tratante da Villa de Chcim Bispado de Miranda, filho de João Lopes Christão novo que foy preso pelo Santo Officio & de Isabel Lopes Christã nova: por judaismo & ferir certa pessoa, que presumia ter testemunhado no Santo Officio contra hum parente seu & foy açoutado & degradado por tres annos para as Galès


Esta Lista continha 189 sentenciados.


Apud, Francisco BETHENCOURT, 1994, História das Inquisições, Lisboa, Círculo de Leitores

quinta-feira, maio 19, 2005

O Jornal a Venteira

A 15 de Dezembro de 1921, os amadorenses puderam, pela primeira vez, comprar por 10 centavos e ler o jornal quinzenário a Venteira. Este era, por assim dizer, o segundo jornal a ser publicado na Amadora, depois dos números de 1912 e 1915 do a Amadora.

No seu nº 1 a Venteira propõe-se pugnar pelo desenvolvimento d’esta linda terra; incitar os seus grandes amigos a continuarem a (…) tarefa em pról dos seus melhoramentos.

O primeiro director deste periódico será Martins dos Santos e o seu editor Neves Carneiro. A partir do nº 8, este último assume o lugar de director e para o seu lugar virá José Alvarez. A propriedade era do Grupo d’”Venteira”.

É de realçar que foi nestas páginas (a 20 de Agosto de 1922, no nº 7), que pela primeira vez, publicamente, se levantou a questão do concelho da Amadora, com o lançamento de um inquérito que propunha três questões: manter a ligação a Oeiras, passar para Cintra (sic) ou constituír um concelho próprio.

O último nº deste jornal, o 28, sai a 28 de Julho de 1923. No nº 1, vinha o aviso de que a Venteira dispensa honrarias ou favores. Honra lhe seja feita, a Venteira, sem favores, tem o seu lugar na História da Amadora. O último nº deste jornal, que tinha horror aos pirolitos em garrafas de champagne, custava já 20 centavos.

A Ponte Filipina

1631, reina em Portugal, Filipe III, IV de Espanha. Nesse ano, enquanto os holandeses incendiavam Olinda, no Brasil, os árabes massacravam portugueses em Mombaça, havia perturbações populares em Beja e o rei introduzia novos impostos, o Senado de Lisboa mandava construir uma ponte, na Estrada Real de Sintra, por cima da Ribeira de Carenque, junto a uma propriedade dos Corte-Real. Como uma lápide informa, foi a ponte construída com o Real do Povo (imposto que inicialmente incidia sobre a água e que mais tarde se vai estender à carne, ao vinho, etc.)

Trata-se de uma ponte com tabuleiro em cavalete pouco acentuado (com o meio sobrelevado relativamente às margens), que se lança sobre a Ribeira sobre dois arcos de volta perfeita, de dimensões desiguais, separados por um talha-mar.

É a nossa Ponte Filipina, Ponte do Lido ou Ponte Velha, velhinha de 368 anos, de valor histórico e simbólico porque une a Amadora a Queluz! Urge dignificar e proteger este monumento, que no verdadeiro sentido da expressão, já tanto aguentou…

Da História e da História da Arquitectura - Validade e Valor

“Le calendrier, la montre.
Traces essentielles de la trajecttoire de chaque
civilization et du cours de la vie pour chaque homme.”
Jacques ATTALI (1)


Parte I
A História como Universo Ontológico
Verdade e Validade

“(…) a
ciência não é um acontecimento original da verdade, mas sim a
exploração, de cada vez, de um domínio da verdade já aberto (…)
Martin HEIDEGGER (2)




O sujeito da História é o ser. Este ser caracteriza-se pela permanência e pelo devir, pelo que, só se pode conhecer o ser com uma representação do universo. Só através dessa representação se chegará ao topos e ao ludus, numa perspectiva ontíca. A História é, assim, um universo ontológico, onde se privilegia a essência do fenómeno tempo, que importa ao ser.

Este universo ontológico formaliza-se numa noção de cosmos aberto e complexo, em que o conhecimento não se pode reduzir a uma ordem cronológica, verificável pelos testemunhos e simplificados por leis universais. É que a soma dos testemunhos não é igual ao todo da História. O ser, sujeito da História, não se reconhece numa teoria unificadora e totalizadora, porque ela seria sempre realizada no concreto. Ora a História coloca-se no abstracto, porque o objecto do seu conhecimento não existe, não pertence ao mundo da experiência. Ninguém pode experimentar a História e partir daí para uma noção linear, simples, segura, irreversível e automática do processo histórico. A História terá que ser, antes, problema e reflexão, se queremos contemplar duas das características principais do Homem – a liberdade e a responsabilidade.

Os dois conceitos anteriores actuam na consciência do ser e posicionam, esse mesmo ser, perante a necessidade de constituir referentes. Surge assim, uma teoria de universais, que formalizada, como já vimos, num universo ontológico, implica uma axiologia estruturada ao nível do verdadeiro/falso.

A História é, então, um conhecimento intelectualizado, que procura a verdade. O Valor da História será uma representação do Mundo, agindo no tempo pensado, e realizado nos eixos diacrónico e sincrónico, desse tempo.

Mas este ser, sujeito da História, é um ser partilhado. É o ser pensador e realizador de acções e o ser pensador e julgador de acções. O universo ontológico comporta portanto duas visões – a memória legada e a minha memória. E sem uma, a outra não existe. A minha memória só existe, porque outras a constituíram, mas, se eu não problematizo a memória legada, ela apenas será topos e nunca ludus. Então, com que verdade é que eu vou trabalhar? Com uma verdade pretensamente concreta e, portanto, pretensamente absoluta, fixada já pelo sujeito do passado, escondida nas brumas do tempo e a qual eu agora tenho de descobrir. Ou com uma verdade do meu conhecimento, procurada enquanto construção do real, partilhada por mim e pelos sujeitos que eu aceito, a partir da minha posição axial.

A primeira verdade não a posso aceitar, pois ela não é conhecimento infraestruturado. Não é noesis por rejeição e não pode ser gnose por impossibilidade de prova directa. Resta a segunda verdade, aquela que eu vou construindo, porque essa é baseada na própria estrutura do conhecimento – o julgar. Assim a História irá constituir o seu valor pelo conteúdo de um juízo exercido pelo sujeito perante um objecto de consciência (1). Só através do conhecer é julgar, é que a História será saber.

Para que serve a História? Esta é uma pergunta muitas vezes feita, por historiadores e não historiadores. R. G. Collingwood respondeu que “(…) a História é para o auto - conhecimento humano (…)” (2). Mais à frente o mesmo autor diz: “(…) conhecer-se a si mesmo significa saber o que se pode fazer. E como ninguém sabe o que pode fazer antes de tentar, única indicação para aquilo que o homem pode fazer é aquilo que já fez. O valor da História está então em ensinar-nos o que o Homem tem feito e, deste modo, o que o Homem é (…)”.

O que o Homem tem feito é o que o Homem é! O Homem é actividade e sensibilidade, é criação, percepção e memória! E é na memória que todo o universo da História se realiza. O historiador é o investigador da memória. Não da memória organizada em leis fixas, compartimentada e codificada, como a memória de um computador, mas a memória colectiva, local, regional ou universal, com uma constante variabilidade nas suas condições biológicas, sociológicas e existenciais. E essa memória é a condição fundamental da possibilidade de pensamento. Aliás, ela é pensamento. O historiador não a observa quando a quer conhecer. Ele vive a experiência da memória no seu espírito, apreende-a como sua própria experiência e reconstitui-a na construção do seu próprio real. A verdade da História, então, não se dá a conhecer de uma forma automática. Cada historiador terá que construir a verdade que procura, através da sua própria posição de sujeito perante o real. A essa verdade só se chega, implicando a actividade do próprio sujeito, tendo em conta a infraestrutura do conhecimento. Numa ordem vivencial do conhecimento – a noésis – o sujeito ajuíza.

Para conhecer a História, o historiador julga a memória. Só então os fenómenos históricos se apresentam ao seu espírito, passíveis de compreensão. Se o espírito compreendeu os fenómenos e tendeu a normalizá-los, se se adaptou a eles, então construiu-se uma verdade.

Este conhecimento, alcançado desta forma, nunca será comprovado através de uma ordem empírica ou científica. Sendo uma actividade do espírito, mesmo tendendo a normalizar um cosmos, ele tem que aceitar uma variabilidade intrínseca na modelação dos outros espíritos/memórias que utiliza. Não posso julgar o espírito A e daí extrair um conhecimento válido para o espírito B, sobretudo se estou a agir num eixo diacrónico. Nem me posso esquecer que, ao julgar, eu estou a utilizar a minha própria experiência. O conhecimento que eu extraí, posiciona-se primeiro perante a minha consciência existencial que, axiologicamente, aceita a existência de outros sujeitos. Através da virtualidade da minha proposta, terei então de procurar um acordo de intersubjectividade, sem o qual, a experiência da memória, que reconstituí no meu espírito, nunca se constituirá em universal.

Consideramos a verdade histórica como uma operação do sujeito/historiador e não como algo já preexistente. Esta operação é feita pelo intelecto, é portanto um acto de inteligência e uma ordem de conhecimento.

Necessitamos, então, de precisar a finalidade do conhecimento, chegando à conclusão de que ela é o inteligível e não o real. Deve-se isto, a que o conhecimento é apenas a construção do real, ou seja, a construção que cada sujeito opera do mundo. Se o conhecimento fosse o real, então a verdade da História seria preexistente, à espera de ser descoberta. Mas como apenas conhecemos o inteligível, a verdade histórica só é válida enquanto operação do sujeito.

A actividade da História desenrola-se, portanto, entre o intelecto e o inteligível, através da inteligência. O conhecimento histórico, como já vimos atrás, não podendo ser provado nem estabilizado, e dependendo de um acordo de intersubjectividade, dependerá então da lógica, enquanto instrumental da ontologia. O trabalho do historiador será, então, construir proposições verdadeiras, que se incluam num universo do discurso já enquadrado pela experiência, individual e colectiva. Assim o discurso histórico actua como uma simbólica da lógica matemática, estruturando e instrumentalizando um raciocínio abstracto. O problema da História é que, bastas vezes, é-lhe difícil fugir do axioma do terceiro excluído devido à ausência de termos necessários. É por isso que a operação lógica na História é normalmente um raciocínio dedutivo, raras vezes assertivo, muitas vezes apodíctico e quase sempre problemático. A sua imprecisão de linguagem, devido à ausência de termos necessários, provoca muitas vezes o aparecimento de paralogismos. Para se evitar este tipo de situações, a única regra que se impõe é verificar, até à exaustão, a veracidade possível da proposição. É claro que nunca chegaremos a uma certeza absoluta, contingência da própria História. Mas esse é um risco que temos de correr, uma das aporias a que se referia Marc Bloch, num campo em que muitas vezes o historiador acaba por servir-se da sua intuição, valorizada pela experiência pessoal.

Voltando ao tipo de raciocínio usado na História, afirmei que ele era dedutivo. Não pode ser indutivo, porque esse baseia-se numa observação do particular, seguindo-se uma generalização – Eu posso dizer – este animal é um peixe, ele tem vértebras. Logo, todos os peixes têm vértebras. Mas já não posso dizer – este homem viveu em pleno século XVI, ele virou-se para a feitiçaria, logo todos os homens que viveram no século XVI se viraram para a feitiçaria. Aliás, mesmo nas ciências experimentais, este raciocínio só chega a lei formulada, a partir de um grande número de casos de observação, tendo de ser reformulada sempre que apareçam excepções.

Mas o raciocínio competente da história é o dedutivo. A diferença em relação à dedução lógica matemática está nas premissas iniciais. Nesta, a premissa inicial faz funcionar os silogismos num sentido ascendente, de um possível inteligível ou pré - inteligível – o axioma – (através da informação directa, indução, intuição ou conjectura), para o inteligível – o teorema. Na História, a premissa inicial terá que ser constituída na experiência/memória do próprio historiador. Aqui a dedução terá que ser, toda ela, constituída no domínio do inteligível, mesmo que o historiador utilize, no arranque, a intuição ou a conjectura. Uma vez mais, remetemos para a liberdade e a responsabilidade do historiador, e portanto, para a sua consciência existencial. Contudo não nos podemos esquecer que, na História, o silogismo não se organiza por si próprio, enquanto validez. Cada um dos termos da proposição terá que ser, sempre, abalizado pela experiência intelectualizada.

O discurso histórico, numa analogia com a lógica matemática, é um polissilogismo, um longo silogismo. Cada proposição dessa cadeia é um juízo dependente da inteligência do historiador. O sujeito de cada uma dessas proposições, já o definimos, é o ser. O predicado teremos que o encontrar na experiência intelectual do historiador, construída a partir de uma memória inerente ao próprio ser. Então, a operação definidora do ofício do historiador será o juízo em si – a expressão copulativa.

Pelo já visto anteriormente, este juízo será sempre constitutivamente subjectivo, porque ele é sempre particular, tanto em relação ao ente designado como ao formulador da proposição. Nesta subjectividade do juízo poderemos encontrar uma subjectividade partidária do juízo e uma subjectividade imparcial do juízo. A primeira é uma situação a evitar, tendo em conta que ela é, sempre, uma manipulação da história, um abuso de competência. Num juízo partidário da História, o historiador/manipulador não constrói a verdade, mas adapta o predicado da proposição àquilo que previamente já estabeleceu como a “sua” verdade. Essa verdade será assim um preconceito ou um pré - juízo. “(…) os abusos da História só são um facto do historiador, quando este se torna um partidário, um político ou um lacaio do poder político (…)” (5).

Quanto à subjectividade imparcial do juízo, ela é conseguida através de uma deliberada e consciente honestidade. Embora toda a actividade se passe no intelecto do historiador, ele não tem o direito de escamotear o que a memória histórica, através dos testemunhos, lhe informa. A partir dessa informação, o historiador deve estabelecer e evidenciar a verdade, ou o que julga ser a verdade.

Finalmente, uma última questão que se prende, também, com o juízo – a objectividade da História. Esta tem sido um cavalo de batalha para muitos historiadores, em especial, a partir do século XIX. Ao colocarmos a premissa da subjectividade do juízo histórico, estamos, automaticamente, a afastar essa objectividade. Contudo, essa referência apenas funciona para o historiador, como indivíduo. É possível atingir essa objectividade, pelo menos idealmente, através de uma constante revisão do discurso histórico, elaborado por todos os historiadores. Assim, no futuro, seremos objectivos. Mas terá que ser um processo permanente. Portanto, quando o futuro for presente, ele vai ter de continuar. Logicamente que essa possibilidade existe, mas só como instrumental da própria História, permitindo aliás, modificações qualitativas na nossa visão da História, e por isso, modificações no nosso universo ontológico.



Parte II
Do “Homo Historicus” e da História da Arquitectura

“A Arquitectura é então uma ferida feita
sobre a superfície da Terra.
É um desenho macroscópico que vamos
imprimindo para as gerações futuras
e elas vão chamar-lhes monumentos ou memórias.
Para Gaia são apenas tatuagens ou cicatrizes.
Ana Leonor Madeira RODRIGUES (6)


Muito provavelmente, e à luz dos conhecimentos actuais, uma das características que distingue o homem dos animais, é o facto de este ter uma memória reflexiva, tanto ao nível individual como ao nível colectivo. E desde sempre o Homem demonstrou vontade de utilizar essa memória. Através de rituais mais ou menos complexos, através da arte, através da escrita, o Homem tem tentado, desde o Paleolítico e até à actualidade, sinalizar essa sua faculdade. Correndo o risco de simplificar, talvez seja isso a que genericamente chamamos História. Se falamos de um Homo Faber, de um Homo Aesteticus, não será, então, arriscado em demasia, falar de um Homo Historicus, ser pensante, ser produtor de cultura que se propaga no tempo através da actividade do seu intelecto. Esta memória é a condição fundamental da possibilidade de pensamento. Ora, na génese do Homem, quando o hominídeo deu os primeiros passos no processo no pensamento evolutivo que o levou ao Homem, foi precisamente essa sua faculdade de pensar, que lhe deu os instrumentos necessários à sua sobrevivência. E esses instrumentos não se constituíram apenas em tecnologia, mas também em cultura e conhecimento. Isolado num mundo agressivo, sem armas naturais, força ou velocidade, para se defender de outros animais, o hominídeo necessitou de dominar o mundo, para assim sobreviver. E esse domínio foi conseguido através do espírito. Pelo seu espírito, o Homem construiu o seu real. Um real conhecido, portanto mais afável para o Homem. Conhecendo os fenómenos, o Homem pode, agora, dominá-los através de uma acção religiosa, científica ou outra qualquer. Como sujeito do seu real., O Homem é agora naturante em ralação ao mundo.

Mas este real não é estático, ele move-se num sistema de eixos – diacrónico e sincrónico. E na sua memória acumulam-se experiências. Essas experiências são construídas através da relação do sujeito com o mundo. Assim, também o mundo é naturante do sujeito. E é nesta condição do sujeito que se forma o Homo Historicus – os fenómenos do mundo são fenómenos do Homem e os fenómenos do Homem, sendo fenómenos do mundo, fazem parte do universo ontológico do ser.

Neste cosmos construído pelo sujeito/Homo Historicus entende-se, facilmente, a importância da memória e das formas em como essa memória se expressa. O documento/monumento adquire uma posição central na operação de julgamento que o historiador faz. Aliás, o Homem é o único animal, ao que parece, que armazena memória fora do seu circuito orgânico, criando assim uma memória artificial – o Património – extensão da sua memória biológica. Todo o Património é História potencial, à espera que o historiador exerça a sua escolha e o seu juízo. Contudo não se pode perder de vista o facto de este património ser, apenas, memória do sujeito, e não o sujeito em si.

O Património/testemunho tem, assim, o valor de memória, para além de outros valores que se podem reconhecer (7). Como valor de memória, axiologicamente, cada testemunho pode ser encarado, como directo ou indirecto, em termos heurísticos, conforme se aproxima mais ou menos da perspectiva arqueológica do fóssil director. Contudo terá de ser, sempre, encarado como evidência, em termos hermenêuticos.

O fenómeno artístico é um dos elementos paradigmáticos deste Património, uma vez que ele é forma, espaço (8), ritmo, harmonia, medida. O artista transforma - através da sua vontade de transmitir valores – objectos materiais em memórias perceptivas. É assim que a arte, e necessariamente a Arquitectura, se apresenta como memória vivencial, logo testemunho directo, mas também visão globalizadora do mundo, logo testemunho indirecto, mas extremamente privilegiado na sua relação com um suporte ideal.

O conceito de Arte define um conceito de valor atribuído a uma criação humana. O valor artístico de um objecto é aquele que se evidencia na sua configuração ou na sua forma, sendo resultado de uma actividade mental e uma actividade operacional. Logo, qualquer que seja o ponto de contacto com a realidade objectiva, uma forma é sempre qualquer coisa que é dada a perceber. Daqui decorre que será através da percepção que o valor artístico se manifesta, em primeiro lugar. Será, também, através da percepção, que a memória presente num testemunho se dará a conhecer.

Tendo em conta que as formas valem como significantes somente na medida em que uma consciência lhes colhe o significado e lhes faz um juízo de valor, o historiador da Arte, logo o da Arquitectura, terá duas funções primeiras. Uma perceber a memória, juízo histórico, outra fazer uma aproximação ao Belo, juízo estético e artístico. A História da Arte/Arquitectura será assim, sempre, uma História de Juízos de Valor.

Mas a História da Arquitectura é também uma História de “tatuagens e cicatrizes”, na feliz expressão já referenciada, logo o historiador nunca poderá apreender essa Arquitectura, apenas como isolada ou personalizada. Ela terá sempre uma raiz oculta, uma História antes da sua existência material. E as matizes tatuadas não são apenas do tempo da sua criação, como também do da sua fruição. Voltemos aos eixos da História, sincronia e diacronia. O historiador da Arquitectura terá que utilizar, reflexivamente, ambos – terá que conhecer o monumento e a tatuagem, a memória e a cicatriz. Na História da Arquitectura, o homem é, então, Faber, Aesteticus e Historicus, sendo a Arquitectura uma representação do Universo. Do seu Universo ontológico.

Como o sujeito da História é o ser, a História da Arquitectura terá validade e valor, não como, meramente, observação e compreensão de uma existência, mas como problema e reflexão, aliás como toda a História.
Para que serve a História da Arquitectura? Para o auto-conhecimento humano, tal como toda a História e, para o auto-conhecimento da Arquitectura. Será então lícito dizer que se a memória reflexiva é condição do pensamento, a História será condição do Homem, logo a História da Arquitectura será condição da Arquitectura, mas também do Homem.











Notas

(1) in Jacques ATTALI, Histoire du Temps, Paris, 1982, p.10
(2) in Martin HEIDEGGER, A Origem da Obra de Arte, Lisboa, 1992, p.50
(3) v. Valor, in Maria João Madeira RODRIGUES, Pedro Fialho de SOUSA & Horácio Manuel Pereira BONIFÁCIO, Vocabulário Técnico e Crítico de Arquitectura, Lisboa, 1990
(4) in R. G. COLLINGWOOD, A Ideia de História, Lisboa, 1989, p.21
(5) in Jacques Le GOFF, Documento/Monumento, in Enciclopédia Enaudi, Lisboa, 1984, p.167
(6) in Ana Leonor Madeira RODRIGUES, A Ilha dos Museus, in GEHA, n.º 2/3, 1999, p. 167
(7) Estético, económico, sociológico, afectivo, psicológico, etc.
(8) “Ritmando a forma e plasmando a espacialidade, o Ser ordena o mundo reico e ascende a uma prática ontológica”, in Maria João Madeira RODRIGUES, Valor. Introdução ao Estudo da História da Arquitectura e do Urbanismo, in GEHA, nº 1, 1998, p.57

Para uma História da Amadora - Alguns traços breves

Com cerca de 24km2, a Amadora é um dos concelhos mais pequenos do país, sendo toda a sua área, considerada urbana. Como cidade é um fenómeno recente, de 25 anos. Anteriormente, a Freguesia da Amadora, pertencente ao concelho de Oeiras (em épocas mais recuadas a região fez parte dos concelhos de Lisboa, de Belém e de Sintra), era a maior (em termos populacionais) Freguesia da Europa. Hoje, no panorama das cidades portuguesas, a Amadora pertence ao grupo das terceiras em número de habitantes (logo a seguir a Lisboa e ao Porto). Dispõe, actualmente, de dois parques industriais, um, o da Venda Nova, constitui-se a partir da década de 40 (com empresas como, a Sorefame, a Bertrand ou os Laboratórios Vitória), o outro, de formação mais recente, sobretudo a partir dos anos 80, é na Venteira (com empresas como a Siemens, a Canon, etc.). Tem um comércio bastante diversificado, tanto o tradicional como ao nível das grandes superfícies. Começa a estar razoavelmente bem estruturada ao nível dos serviços, salientando-se uma rede escolar bastante vasta, embora ainda carente, em especial no pré-escolar e superior.
Apesar de tudo isto, a Amadora é uma cidade condicionada pela proximidade de Lisboa, sendo a sua história considerada transversal em relação à história da Capital. Chega-se a referir a Amadora como a “cidade sem história”. Contudo a Amadora (como, aliás, qualquer outra localidade) tem uma história rica, estruturante do seu próprio presente.
Durante a Pré-história, a região da Amadora foi bastante habitada, mais intensamente em alguns períodos, como no Paleolítico Médio, Calcolítico e Idade do Bronze, embora existam materiais de praticamente todas as épocas, com excepção do Mesolítico e Neolítico Inicial. Com a Idade do Ferro iniciam-se contactos com o Mediterrâneo, o que é atestado por materiais púnicos e de Roma Republicana. Não é de estranhar que a ocupação romana tenha sido uma realidade. Nascerá nessa época a sua ligação a Olisipo/Lisboa, tornando-se esta região num alfobre agrícola, para a urbe da foz do Tejo.
Da época islâmica e medieval, na realidade pouco sabemos, mas isso não é de espantar, tendo em conta uma economia de subsistência ou de pequeno comércio, poucos são os documentos escritos existentes, embora valha a verdade que ainda muito trabalho de heurística falte fazer. Mas aqui a toponímia pode-nos ajudar – Alfragide, Alfornel, por exemplo, ou Casal do Castelo, Alto da Cabreira, Moinho do Castelinho, são topónimos que nos remetem para esses horizontes. Zona saloia por excelência, podemos imaginar courelas bem tratadas, hortas com seus poços e cegonhas, searas de trigo doirado, ou centeio ou cevada…
Já no Antigo Regime aparecem as primeiras indicações de uma forte centralidade, marcada eventualmente pela posição estratégica ao nível das comunicações na Península de Lisboa, implicando sobretudo três povoações. A mais conhecida, na época, era a Porcalhota, aldeia tipicamente saloia, referida por Eça de Queiroz, n’Os Maias, devido ao famoso coelho guisado de Pedro Franco – o “Pedro dos Coelhos”. Outra das razões desta fama é que aqui se separavam as Estradas Reais de Lisboa-Sintra e de Lisboa-Mafra. A norte da Porcalhota, situava-se uma mais pequena aldeia, a Falagueira (ou Falagueiras), que é objecto do documento escrito mais antigo, que se conhece, sobre a Amadora – aqui haveria, no século XIII, uma granja da Ordem Militar do Hospital. Finalmente, para Oeste destas duas aldeias, no alto de um monte, estava o lugar da Venteira, já próximo do Palácio de Queluz.
Já com o Liberalismo e como resultado da política da Regeneração, em 1887, um acontecimento revelou-se marcante para toda a história recente da Amadora – inaugurou-se a linha de Caminho de Ferro de Sintra, com uma estação equidistante das três referidas povoações. A estação recebe, nessa altura, o nome da povoação mais populosa – a Porcalhota. Em 1895, instala-se na vizinhança da estação uma fábrica de espartilhos a Vapor, fundada por um comerciante lisboeta, que, entretanto vem viver para a Amadora – José dos Santos Mattos. Era o início de uma relação privilegiada, entre a mão-de-obra da região e a facilidade de transporte através do caminho-de-ferro, de matérias-primas e produtos transformados.
Outro fenómeno está, nesta altura, a acontecer em Portugal, que irá contribuir para a transformação desta região. Está a haver uma mudança de mentalidade na burguesia portuguesa, mudança essa já ocorrida noutros países há muito tempo. O objectivo dos burgueses (de alguns, pelo menos) deixou de ser a aproximação à nobreza (ordem social, por natureza, de ostentação de riqueza), para se afirmarem como uma classe de reprodução de riqueza (dentro do quadro do Capitalismo Industrial e Financeiro, exposto a partir da Revolução Industrial, iniciada em finais do século XVIII, em Inglaterra). Essa viragem de uma parte da nossa burguesia implicou, mesmo, uma recusa dos locais de veraneio tradicionais do “jet-set” oitocentista. Os finais do século XIX são assim marcados, na Amadora, pela construção de várias casas de campo de uma burguesia jovem, sobretudo, bastante intelectualizada. Muitos deles acabarão mesmo por aqui constituir residência, em inícios do século XX, contribuindo para o desenvolvimento da zona. Em 1907, numa fase em que as três povoações cada vez estavam mais próximas, a Amadora, nome de uma quinta local, passa a designar toda a região, pondo-se de lado o velho topónimo da Porcalhota, considerado, pelos habitantes, pouco digno.
Os anos que se seguem são de grande desenvolvimento para a Amadora. A fundação da “Liga de Melhoramentos”, os “Recreios Artísticos”, as `”Festas da Árvore”, a criação da Freguesia da Amadora, a instalação do “Grupo de Esquadrilhas de Aviação Republica” e construção do respectivo aeródromo, a inauguração do Parque “Delfim Guimarães”, são marcos de uma evolução urbana de grande qualidade, com equipamentos muitas vezes inovadores, relativamente ao resto do país.
Esta evolução mantém-se até cerca da década de 40. É precisamente nessa fase que é criado o primeiro parque industrial. A partir daqui há uma viragem sociológica e económica (e mesmo psicológica) na Amadora. O êxodo rural que se iniciava e a necessidade de mão-de-obra para as indústrias recentes, tanto amadorenses como lisboetas, implicam um forte crescimento e, logicamente, uma pressão urbanística, que provocará uma mudança da imagem urbana.
A partir dos anos 50, começa a construção da imagem da actual Amadora. Intensifica-se um forte êxodo rural e a Amadora transforma-se, pouco a pouco, num dormitório, com uma população flutuante que não permitirá a manutenção de um sentido de vila. É a época em que se inicia a construção da Damaia e em que aparecem as primeiras casas clandestinas na Brandoa. Os anos 60 e 70 acentuam esta situação, cada vez haverá uma maior desclassificação aparecem os primeiros bairros degradados, é a Amadora suburbana. Sem qualquer urbanidade, longe já iam os tempos da Amadora rural e burguesa do início do século XX, em que habitar na Amadora era um prazer.
A Amadora é cidade desde 1979, por pressão populacional. Desde essa altura cresceu ainda mais, mas, paulatinamente, recriou vida interna, recriou espaços de lazer e de trabalho. O terciário, sobretudo, cresceu a um ritmo bastante elevado. A pouco e pouco a Amadora foi-se requalificando, pese embora muito ainda falte fazer. Entretanto, passa a ser parte integrante de uma conurbação (junta-se fisicamente às cidades de Lisboa e Queluz), constituindo-se num dos pontos fulcrais da comunicação entre várias frentes urbanas. Isso obriga a outras reflexões acerca de história urbana, mas essa terá de ser outra abordagem…

Regaleira

Penetrar na Quinta da Regaleira é penetrar no ambiente do tardo-romantismo português, em que o país ainda vivia os acontecimentos ligados ao ultimatum inglês de 1890 e em que se procurava agora a redenção através de uma atitude estética e até de estilo de vida, numa ligação ao neo-manuelino, ou seja, a uma época áurea da História de Portugal. É assim que se percebe porque razão Carvalho Monteiro, o Monteiro dos Milhões, recusou um primeiro projecto ao Francês Lusseau para o palacete que pretendia construir na quinta que anos antes tinha comprado, e vá buscar o cenógrafo Luigi Manini que em 1888 tinha riscado o Palace Hotel do Buçaco.A espera inicial para que o grupo se reunisse, permitiu a contemplação da arquitectura-cenário do palacete, por cima do varandim de arcos canopiais que serve de guarita de protecção imaginária ao portão. E esse edifício remete-nos para a Torre de Belém, para os Jerónimos, para Tomar, enfim para os principais marcos da arquitectura manuelina, numa mistura de torres, coruchéus, pináculos, arcos de vários tipos, teatral contudo harmónica.Entramos. Iniciamos a visita guiada pelos jardins. Estes fazem parte de um todo imaginado pelo proprietário e disposto pelo cenógrafo. Não são uns jardins quaisquer. Eles organizam um percurso simbólico, iniciático. Toda a estatuária, as torres, as falsas ruínas, as grutas artificiais, as fontes, são objectos falantes, inscritos numa simbólica ligada eventualmente aos Rosa-Cruz ou aos neo-templários. O percurso é ascendente e culmina no poço, cuja entrada, disfarçada, só é permitida a quem seja ajudado. Descemos esse poço ao encontro da escuridão total. Penetramos nas entranhas da terra e quando saímos, quando encontramos outra vez a luz, estamos purificados.Descemos agora ao encontro da capela. Agora já lá podemos entrar. Da capela, onde bem marcada está a obra dos canteiros coimbrãos que Manini utilizou, sai um túnel até ao Palacete. Mas nós não somos verdadeiros iniciados, não o vamos utilizar. Entramos na casa. Arquitectonicamente o interior do palacete é o que tem menos valor. Aliás não se poderia exigir muito mais a Manini. As salas são delineadas por um corredor central, que acolhe também o lançamento da escadaria para os pisos superiores. Vale pela decoração, marcada sempre pela simbólica e pela heráldica falante que já havíamos encontrado nos jardins.Saímos. Olhamos para trás e damos um últimos olhar à “moça dos pombos” que continua ali, por baixo da varanda, na sua tez de pedra branca de ançã!

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